Este país, contra o qual tantas vezes me irritei, eis que me punge deixá-lo. Muitas vezes me perguntaram nestes últimos tempos: “Gosta da América?” e Este país, contra o qual tantas vezes me irritei, eis que me punge deixá-lo. Muitas vezes me perguntaram nestes últimos tempos: “Gosta da América?” e eu tinha o hábito de responder: “Em parte sim, em parte não”, ou “50%”. Esta avaliação matemática não significa grande coisa; reflecte simplesmente as minhas hesitações. Não passou um dia na América em que me não sentisse deslumbrada, nem um dia em que me não sentisse decepcionada.
Em 1947, Simone de Beauvoir passou quatro meses nos Estados Unidos da América. Cosmopolita como era, apaixona-se pela efervescente cidade de Nova Iorque, mas não tanto pelo resto do país, ora tacanho e segregacionista, ora resplandecente e oco, que conheceu sobretudo em várias road trips aos locais mais turísticos, como Hollywood, Las Vegas, New Orleans, Grand Canyon e cataratas do Niagara, divertindo-se “como num circo ruim”. Quem tem presente a imagem da filósofa francesa, com o seu coque em forma de coroa e o seu ar altivo, dificilmente a imagina a frequentar bares de jazz duvidosos, a atravessar o deserto num carro que pode avariar a qualquer instante, a assistir a combates de wrestling, a percorrer estados como Novo México, Texas, Carolina do Sul e Virginia nos míticos Greyhound ou a fazer uma excursão de burro, e muito menos a fumar um charro…
Tento uma vez mais; é a última; os olhares estão fitos em mim, carregados, severos: sinto-me digna de censura; a garganta arde-me. Engulo o fumo todo e nenhum anjo se incomoda para me erguer do solo: não devo ser sensível à marijuana.
…mas aqui está tudo isso, escrito pelo seu próprio punho neste diário. Um ano e pouco depois do término da Segunda Guerra Mundial, vinda de um país por ela fustigado, Simone de Beauvoir aprecia as lojas bem recheadas não só de bens essenciais como artigos de luxo tendo, no entanto, de suportar a sobranceria norte-americana que já então iniciara o apoio económico à Europa.
Fala com uma enternecida piedade da pobrezinha Europa, sem tecto, sem pão, sem fogo, sem sapatos, e da ajuda que a América lhe deve prestar, dos livros que lhe deve enviar para a alimentar espiritualmente. “No momento em que os transportes eram raros e difíceis, diz ele, mandámos de avião para a Polónia uma cópia do filme “E Tudo o Vento Levou”. Houve quem nos censurasse essa dissipação. Mas talvez tivesse havido um punhado de polacos que, ao assistir à exibição deste filme, tenha compreendido que ainda havia no mundo uma terra de liberdade…”
Para de imediato contrapor a esta declaração de um elemento de Departamento de Estado outra de um amigo seu…
A nossa democracia não passa de uma pseudodemocracia. (…) A palavra liberdade esvaziou-se de todo o seu conteúdo.
…dando como exemplo algo que continua a ser alarmante nos nossos dias: a censura nas bibliotecas públicas. Falando em literatura, também não poderia ser mais actual e pertinente a apreciação sobre o mercado editorial de então:
Se decidirem fazer de um livro um best-seller, por medíocre que seja, consegui-lo-ão à custa de publicidade: são os editores quem, em grande parte, financiam todas as revistas e exigem que se fale elogiosamente dos livros que publicam; o propósito dos artigos críticos é promover a venda do livro criticado.
Entre os vários escritores com quem privou durante os quatro meses da sua estadia, a quem geralmente só se refere por siglas, conheceu em Chicago Nelson Algren, com quem iria viver um “amor transatlântico” durante 17 anos, ainda que nas páginas deste diário não se consiga suspeitar dessa relação amorosa, aproveitando antes para o dar como exemplo da “solidão intelectual em que vivem os escritores da América”. O propósito desta visita a terras americanas foi também o de dar conferências, sobretudo em universidades, apesar de alguns comentários ao comunismo militante da filósofa e à ousadia de um país na penúria ainda ter pensadores. Não são sequer esquecidas as referências ao feminismo que a tornou célebre, ainda que “O Segundo Sexo” só fosse publicado dois anos depois:
Em vez de ultrapassar os resultados adquiridos pelas que as precederam, as mulheres o que procuram é gozá-los estaticamente, o que é um grave erro, visto um fim só ser válido na medida em que sirva de novo ponto de partida.
Para lá de todas as festas, paisagens, palestras e encontros com jornalistas e escritores, De Beauvoir, volta uma e outra vez a apontar o elefante na sala aonde quer que vá, apesar de logo na primeira noite em Nova Iorque um francês lhe ter pedido para não escreve nada sobre a questão racial. Como poderia, no entanto, ignorar o problema óbvio se um dos grandes amigos que fez de imediato, Richard Wright, casado com uma branca de Brooklyn, é um constante alvo de ofensas racistas na sua presença?
À saída da 59ª Rua, uma senhora interpela-me com irritação: “Que fazem as duas com esse preto?” Mesmo os americanos que se dão com os Pretos fazem-no com uma certa prudência. Wright é recebido de bom grado, porque é um escritor célebre. Mas reparo que, na única casa verdadeiramente de high-class em que é admitido, nunca convidam, ao mesmo tempo que ele, senão franceses, judeus, japoneses, chineses e hindus; e nessa mesma casa provoquei eu mal-estar evidente quando relatei as minhas impressões do Sul.
Mas na América das leis Jim Crow, a escritora, recebida calorosamente num serviço religioso do Harlem por ser proveniente de um país que desconhece a segregação racial, não aponta o dedo apenas ao preconceito contra os negros. Não esquece, por isso, os nativos…
À parte de alguns privilegiados, os índios são pobres e o seu nível de vida é muito baixo. Mas podem vegetar mais ou menos em paz no interior dos territórios que se lhe estabeleceram: não têm nem o título de cidadão americano nem os direitos que tal título implica (…) e sob o protectorado paternalista dos Brancos, gozam de um simulacro de autonomia.
…nem sequer os judeus, tão pouco tempo depois do Holocausto.
Em certos pontos do Massachusetts e do Connecticut (centro da América real) há praias reservadas aos judeus, que não têm o direito de tomar banho com os arianos; mas os judeus mandam por seu turno os seus criados pretos tomar banho noutra praia.
Neste ciclo vicioso de discriminação, Simone recorre a uma citação de George Bernard Shaw (1856-1950) para resumir a situação: “A orgulhosa nação americana… obriga o Preto a encerar-lhe os sapatos e demonstra-lhe em seguida a inferioridade física e mental pelo facto de ser engraxador”. É, pois, perante a este estado da nação que a pensadora francesa conclui candidamente sobre o povo americano:
Apenas nos cartazes e nas páginas de anúncios é que os Americanos têm estas faces felizes, estes risos abertos, estes olhares límpidos, estas faces inebriadas de boa consciência; na verdade, quase todos andam em conflito consigo próprios; a bebida é o remédio para este mal-estar íntimo, cujo aspecto mais vulgar é o tédio: como o facto de beber é admitido pela sociedade, não é tomado como sinal de desadaptação; é a forma adaptada da desadaptação.
Seguindo essa ordem de ideias, não posso deixar de referir uma das menções que De Beauvoir faz, por contraste, a Portugal.
Em Nápoles, em Lisboa, por mais pobres que as pessoas sejam, ainda gozam de alegrias animais: o ardor do sol, o frescor de uma laranja, um amplexo na sombra dos leitos; ouvem-se muitas vezes a cantar e rir; e falam umas com as outras; são pobres em comum, em comum tratam das suas doenças, choram os seus mortos, veneram os seus santos; em torno dos seus corpos aflitos sentem, ao menos, um calor humano....more
Este livro é uma preciosidade, sobretudo para quem admira Simone de Beauvoir, e desde que soube da sua publicação que fiquei desejosa de o ler. “A4,5*
Este livro é uma preciosidade, sobretudo para quem admira Simone de Beauvoir, e desde que soube da sua publicação que fiquei desejosa de o ler. “As Inseparáveis” só foi publicado agora, quase sete décadas depois de ter sido escrito, e além do prazer que é ler um inédito desta autora, é de grande valor histórico o facto de conter excertos das cartas trocadas entre ela e a sua amiga Zaza, a qual serviu de inspiração a esta novela, bem como várias fotografias das duas jovens e dos locais que as marcaram. Iniciei a leitura pelo enriquecedor posfácio escrito por Sylvie Le Bon de Beauvoir, filha adoptiva da escritora, já que, conhecendo o desfecho desta amizade graças a “Memórias de Uma Menina Bem Comportada”, queria perceber o que era verídico ou ficcionado.
Ao lado de Simone de Beauvoir, de 9 anos de idade, aluna da escola católica Adeline Desir, senta-se uma morena de cabelo curto, Élisabeth Lacoin, conhecida por Zaza, poucos dias mais velha. Espontânea, engraçada e atrevida, destaca-se do conformismo reinante. (...) Disputam os primeiros lugares da classe, tornam-se inseparáveis. (...) O sentimento que nutre por Zaza é de paixão, venera-a, estremece só de pensar em desagradar-lhe.
Quando Sylvie conhece Andrée, admira a sua liberdade, mas essa independência tem um lado negro e opressivo.
Muitas vezes invejara a independência de Andrée; de repente, pareceu-me muito menos livre do que eu. Havia todo um passado atrás de si; e à sua volta aquela grande casa, aquela família numerosa: uma prisão cujas saídas estavam cuidadosamente vigiadas.
É por esta altura que Sylvie enfrenta as suas primeiras crises de fé...
Uma noite, estendida num prado húmido, diante da Lua, pensei: “São pecados!” e, todavia, estava firmemente decidida a continuar a comer, ler, falar, sonhar a meu bel-prazer. “Não acredito em Deus!” disse a mim mesma. Como poderia acreditar em Deus e desobedecer-lhe deliberadamente? Por momentos, aquela evidência deixou-me estupefacta: não acreditava.
...embora a sua amiga seja uma católica fervorosa, quase mística, o que se torna uma angústia nas suas relações amorosas menos platónicas.
A relação que mantinha com ele não devia ser fácil; de uma coisa eu estava certa: não conseguia convencer-se de que ele era bom; porém, queria agradar-lhe e esforçava-se por amá-lo: tudo teria sido mais simples se, tal como eu, tivesse perdido a fé quando a sua fé perdeu a sua candura.
Apesar de ser convidada para a casa de férias da família Gallard, a matriarca não simpatiza com Sylvie, principalmente porque esta pretende estudar na Sorbonne e trabalhar, enquanto as suas filhas estão destinadas a casarem-se com bons partidos escolhidos pela família.
- Não deve ser nada agradável viver de manhã à noite com alguém que não se ama – disse eu então. - Deve ser horrível – concordou Andrée. Ela teve um calafrio, como se tivesse visto uma orquídea; os seus braços ficaram com pele de galinha. - Na catequese ensinam-nos que devemos respeitar o nosso corpo: logo, vender-se no casamento é tão mau como vender-se fora dele. - Não somos obrigadas a casar – disse eu.
Ainda que esta obra esteja somente compreendida entre a Primeira Guerra e 1929 e explore acima de tudo a intensa amizade das duas raparigas, mencionam-se algumas convulsões sociais na sociedade francesa ainda extremamente conservadora.
Mantinha com Malou e o senhor Gallard uma discussão, que parecia crónica, sobre o sufrágio feminino; sim, era escandaloso que uma mãe de família tivesse menos direitos que um servente bêbedo: mas o senhor Gallard objetava que, entre os operários, mas mulheres são mais vermelhas do que os homens; no fim de contas, se a lei fosse aprovada, iria beneficiar sobretudo os inimigos da Igreja.
Recomendo sem reservas, mesmo a quem nunca se estreou nas letras da grande Simone de Beauvoir, pois é uma excelente porta de entrada no seu universo: um livro acessível, rico e terno.
[Obrigada, Celeste, por teres apaziguado a minha impaciência.]...more
E a luta começara. “Uma rapariga pode.” Continuara os seus estudos, jurara contrariar o seu destino: iria escrever uma tese estrondosa, teria uma cáteE a luta começara. “Uma rapariga pode.” Continuara os seus estudos, jurara contrariar o seu destino: iria escrever uma tese estrondosa, teria uma cátedra na Sorbonne, provaria que um cérebro de mulher vale tanto como o de um homem. Nada disso acontecera. Fizera cursos e militara nos movimentos feministas. Mas, como as outras – essas outras de quem não gostava -, tinha-se deixado consumir pelo marido, pelo filho, pelo lar.
Nicole, a protagonista de “Mal-entendido em Moscovo”, podia ser Simone de Beauvoir numa realidade paralela, se esta se tivesse casado, se esse marido fosse apenas um homem mediano, se tivesse tido filhos e sido professora do ensino secundário. Este livro, porém, tem tanto de ficcional como de autobiográfico, visto que De Beauvoir e Sartre estiveram realmente em Moscovo, onde este filósofo se apaixonou por uma mulher que tinha uma filha chamada Macha. Aqui, Macha é enteada de Nicole e é a presença dela que desencadeia uma crise matrimonial e uma profunda angústia relacionada com a velhice. “Mal-entendido em Moscovo” é, acima de tudo, uma meditação sobre a desilusão, em que Nicole se desilude com o socialismo, com o marido e com o corpo que falha com a inclemente passagem do tempo.
Tragicamente, a sua vida fugia-lhe. E, todavia, escoava-se hora após hora, minuto após minuto. Temos sempre de esperar que o açúcar derreta, que a recordação serene, que a ferida cicatrize, que o aborrecimento se dissipe. Estranha cisão entre esses dois ritmos. Os meus dias fogem a galope, e esmoreço em cada um que passa....more
Hoje, não vivi. Estou a perder dias de vida. Cada dia para ela tinha um preço incomparável. E no entanto, estava a morrer. Eu sabia-o; ela, não. Era eHoje, não vivi. Estou a perder dias de vida. Cada dia para ela tinha um preço incomparável. E no entanto, estava a morrer. Eu sabia-o; ela, não. Era em seu nome que todo o meu ser se revoltava.
Haverá momento de maior existencialismo do que aquele em que somos confrontados com a morte da pessoa que nos pôs no mundo? Neste livro, Simone de Beauvoir debate-se com questões que me são muito caras, como a perda de controlo, da dignidade e da modéstia quando nos vemos internados num hospital, à mercê da competência e da boa-vontade de estranhos. O tom é sempre sóbrio e, de início, parece-nos até frio e calculista com frases como esta: "Não fiquei comovida. Apesar da sua enfermidade, a minha mãe tinha boa saúde. E, no fim de contas, estava em idade de morrer", o que não é de estranhar para quem leu Memórias de Uma Menina Bem Comportada, pois já aí o conflito entre mãe e filha é flagrante e abre um fosso entre elas. Contudo, face à vontade de viver da mãe e ao seu enorme sofrimento, a autora acaba por se reconciliar com ela: Eu tinha-me afeiçoado àquela moribunda. Enquanto conversávamos na penumbra, eu apaziguava um remorso antigo. (...) E a ternura antiga que eu julgara desaparecida regressava, porque podia transformá-la em gestos e palavras simples.
É um relato impressionante dos últimos tempos de vida da mãe de Simone de Beauvoir, mas a elegância da escrita e a sensibilidade recatada desta grande mulher nunca o torna voyeurista nem gratuito....more